Patrícia Barbosa, em “Prova”, convoca imageticamente o passado colonial português. Convoca-o justamente a partir de um arquivo fotográfico familiar, mas de proximidade ambígua porque não necessariamente franqueado à interrogação, não necessariamente inspecionado no que esconde, mais do que sobre o que revela. Um acervo de fotografias que atestam a presença colonial portuguesa de membros da sua família – e, afinal, como tantas outras famílias em Portugal que ainda hoje partilham semelhantes histórias inacabadas, dissimuladas e que nos transportam para um Império por desconstruir nas nossas memórias. E com este passado colonial desvendado pelo acervo fotográfico, de alguma maneira, se convocam todos os fantasmas e pesadelos de uma guerra por historiografar, mas também as ilusões e os tromp l’oeil adscritos a representações do passado que resultam de um conflito colonial violento e sangrento. Que “prova” quer ela enunciar? Que desejo de “veracidade” acalenta? Que sentidos se pretendem repor estes simulacros imagéticos na sua sequência enunciativa em direção a uma descolonização do conhecimento e da história?

Mas este acervo fotográfico que evoca a presença do pai de Patrícia em territórios africanos ocupados colonialmente por Portugal, ao jeito de uma crónica dos dias de guerra, não é apenas assente em documentação visual já que ele mistura, num formato muito criativo de assemblage, cartas, textos de postais, aerogramas e desenhos. Em todos eles uma marca comum transparece nesse efeito de simulação que Patrícia alude: o silenciamento e a invisibilidade do conflito armado e da violência quotidiana de uma ocupação colonial. Este silenciamento visual das marcas que um conflito armado de 13 anos que gerou, considerando apenas o lado português, 8600 soldados mortos – de acordo com o Relatório da Comissão para o Estudo das Campanhas em África, elaborado em 1980 e liderado pelo general Temudo Barata – reverbera a máxima salazarista da “missão civilizadora” que à Nação portuguesa se impunha para lá dos custos sangrentos que dela resultassem. Acresce que desses 8600 mortos, apenas 3736 voltaram para as cerimónias fúnebres junto dos seus familiares na metrópole. Quantos desses corpos desaparecidos ou despedaçados permanecem presentes na bonomia imagética destes postais, destas partilhas domésticas, destas trocas de correspondência colonial. Um silêncio fétido a cadáver amputado, estilhaçado e perdido na mata. Uma invisibilidade que mora apenas, agora, nos relatos dos de corpos de alguns feridos de guerra que o documentário “Da Hospitalidade ao Fantasma” (2014) de Bruno Sena Martins nos revela. O conceito psicanalítico de denegação – isto é, o mecanismo de defesa em que o sujeito se recusa a reconhecer como seu um pensamento ou um desejo que foi anteriormente expresso conscientemente – propõe-se aqui negar a realidade como uma forma de proteção contra algo que pode gerar dor ou sofrimento. Ora justamente, tal como as vozes dos antigos combatentes feridos foram particularmente silenciadas por décadas, também estas fotos que Patrícia Barbosa nos revela agora são elas mesmas uma espécie de denegação apriorística dessa outra realidade colonial que escondem, ou seja, uma negação que permite antecipar qualquer sofrimento paralelamente vivenciado por estes homens combatentes e que os atravessaria de dor e trauma nesses anos de guerra. A mesma estrutura narrativa de hesitação que uma das cartas presentes em “Prova” nos revela, quando um dos combatentes evita escrever o nome da amada e o sentimento que por ela nutre. Fórmulas mágicas de evitamento da dor. Confissões silenciadas, simulacros de realidade ou fantasias lusitanas, como o título do filme de João Canijo (2010) que explora a relação do povo português com os estrangeiros refugiados da segunda guerra mundial em pleno regime fascista. Denegação parece-me bem presente neste espólio imagético que Patrícia Barbosa nos convida a visitar. Um espólio, como disse, presente e revistável certamente em muitas casas portuguesas e que acaba reverberando uma espécie de bordão discursivo que é o consenso lusotropical sobre a presença colonial portuguesa em África. A destreza critica e irónica com que a autora nos revela corpos despidos de jovens mulheres negras se combinando com grupos de militares aquartelados, animais selvagens com praias e cenas de lazer, armamento apreendido com livros com conselhos de higiene sexual, tudo isso nos remete para uma mancha de sinais e significados subtis, subterrâneos e latentes nestas fotos e nestes textos.

Mas a artista-investigadora convida-nos ainda para outros simulacros narrativos nestes objetos artísticos e políticos visuais-textuais. Ela convoca o presente neste passado. E aqui emerge o trabalho de costura analítica e interpretativa mais intenso deste projeto expositivo. Fotos destes jovens soldados dos idos anos 60 na colónia, surgem agora na sua velhice na metrópole do presente. Simulacros temporais, misturam-se nestas cartas das suas madrinhas de guerra, namoradas ou futuras esposas, como as de Berto para Dores e de Dores para Berto presentes na exposição, e que reclamam a passagem do tempo breve, que anunciam ou antecipam regressos. Sobrepostos, como as fotos e cartas, temporalidades se adensam e assumem tensões imprevistas entre esse passado atestado pela fotografia militar suas poses junto ao armamento, aos companheiros, às “outras” famílias locais, nos treinos, nas brincadeiras e nas festarolas de caserna, e, agora, se plasmam em corpos envelhecidos e mais descuidados que espreitam horizontes imprecisos, ou em olhares cansados por detrás de árvores e pomares – os outros “matos” do presente – , ou ainda em rostos rugosos, barbas amarelecidas de cigarros e de memórias sofridas ou em mãos deformadas de anos de trabalho e suor nesta pátria que, afinal, nunca mais lhes deu voz ou retrato.

É essa prova de vida de um passado colonial que mora nestes pedaços de estórias, a prova dos nove de um Império silenciosamente invisível que não é mais coisa nenhuma ( e ainda bem, politicamente falando) e é afinal tanta coisa nestes olhares, nestes rostos, nestas palavras que formam uma manta de retalhos ainda por decifrar da nossa história recente e que o trabalho de Patrícia Barbosa tão bem nos oferece aqui um vislumbre.

Paulo Raposo
Dep. Antropologia ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa | Diretor e Investigador CRIA-IUL